Chica que Manda (Chica da Silva), de Agripa Vasconcelos

7 de junho de 2025 - Regiane Silva

É sempre uma grata surpresa quando um livro me envolve desde a primeira página.

Ler sobre o meu estado e o meu povo foi uma experiência profundamente enriquecedora. Ao mesmo tempo, perceber como certos padrões históricos se repetem, e como os governos mudam pouco, é, no mínimo, desanimador.

Ainda assim, acredito que este livro deveria ser leitura obrigatória para todos os brasileiros. Ele narra a nossa história, revela nossas lutas e expõe o sofrimento que muitos preferem esquecer. É um espelho do Brasil que fomos e, em muitos aspectos, ainda somos.

“Chica que Manda”, de Agripa Vasconcelos, é um romance histórico publicado originalmente em 1966. “Ele misturou fantasia e história para contar as Sagas do País das Gerais”, que retrata diferentes ciclos econômicos e sociais de Minas Gerais colonial.

Neste volume (parte de uma trilogia chamada Sagas do País das Gerais), o autor foca no Ciclo do Diamante, ambientando a narrativa no Arraial do Tijuco (atual Diamantina). A trama acompanha a figura histórica de Chica da Silva, mulher negra que ascende socialmente ao se envolver com João Fernandes de Oliveira, contratador de diamantes da Coroa Portuguesa.

“[Agripa] está longe de querer fazer da sua Chica uma sinhá branca a maltratar escravos. Ele mostra (…) que qualquer mulher negra, ‘mulata’ ou branca, ainda que vivendo num paraíso, cercada de afeto, bens e luxo, pode ser um demônio. Sua Chica não é vítima. Ela é algoz. (p. 7 e 8 do prefácio de Mary Del Priore)

Com estilo narrativo que mescla o português colonial e um narrador onisciente, o autor oferece uma leitura que lembra causos e crônicas mineiras. Ele também insere uma densa pesquisa histórica, recriando com detalhes o universo da exploração de diamantes no final do período colonial.

Desde 1714 se fazia comércio clandestino dos cascalhos (…). Estavam metidos no negócio padres, ourives, meirinhos, oficiais dos Dragões, comboieiros e o próprio ouvidor-geral da Comarca do Serro do Frio. (p. 13)

Algo que Agripa não suaviza em sua narrativa é a forma como Portugal enxergava o Brasil. Fica evidente, ao longo do livro, que os colonizadores viam o povo que aqui vivia como descartável — como se fossem lixo. Essa visão desumana é exposta sem rodeios, revelando o desprezo e a exploração brutal que marcaram nossa história.

Somos da raça dos conquistadores. Dominamos a Índia, afrontando os mares bravos. Sei que é duro partir para a colônia do Brasil e viver entre negros e bugres. Mas… noblesse oblige e eu, gentil-homem da corte, estou disposto a enfrentar os tufões da travessia e as febres dos trópicos, cercando córregos, abatendo feras, para voltar honrando meus avoengos, rico, embora bichado pelas mazelas do clima quente. (p. 18 e 19)

O sofrimento do povo em Diamantina, durante o auge da extração de diamantes no período colonial, é um retrato doloroso da exploração promovida pela Coroa Portuguesa.

Embora a região tenha se tornado símbolo de riqueza e cobiça por causa das pedras preciosas, essa riqueza não ficava com o povo. Ao contrário: a maioria da população vivia em condições de extrema pobreza, enquanto os diamantes eram enviados para enriquecer os cofres de Portugal. Era um sistema de exploração brutal e desigual.

— A gente ser bobo e ingênuo em menino é uma coisa, mas ser tolo depois de velho é caduquice desfrutável.

Quando os visitantes diários se retiravam, já na porta, o padre lhes sussurrou:

— Cuidado com a liberdade. A liberdade é coisa muito fina, é como alfeniim que se parte à toa, até na boca…

Tôrres concordou, acrescentando:

— A liberdade é conhecida aqui só pelos pássaros de Deus e pelos negros fugidos…

Já na rua, Guerra também debicou as instituições: — Conheço a liberdade, mas só de nome. Dizem que ela existe, mas aqui está arrochada nos troncos e contida pela mira das escopetas… (p. 34)

Enquanto a Coroa Portuguesa enriquecia com a extração de diamantes, o povo local mal sobrevivia em meio à pobreza e ao rigor da fiscalização. Em determinado momento, ocorreu o roubo de uma das sacolas de diamantes enviadas anualmente a Portugal. Dois homens negros conseguiram se apoderar do tesouro com a ajuda de alguém infiltrado na torre onde as pedras preciosas eram guardadas. O episódio provocou uma verdadeira onda de terror: o povo experimentou o inferno na Terra, sendo submetido a castigos, perseguições e interrogatórios brutais.

Iniciou-se então no Distrito Diamantino uma caçada, como as sabiam fazer os portugueses. (…) Bastava uma denúncia anônima para perder um pai de família. Um simples nome escrito em papel, deixado sob a porta de autoridade, bastava para enterrar nas masmorras um inocente. (p. 49)

A personagem Chica é retratada com ambiguidade: ora como mulher forte e influente, ora como figura mítica e exagerada. Embora essa representação seja criticada por historiadores, ela continua fascinante na ficção, impondo-se em uma sociedade escravocrata e patriarcal.

João Fernandes era um dos contratadores de diamantes enviados pela Coroa Portuguesa para administrar a extração das pedras preciosas e garantir seu envio a Portugal. Em uma visita à casa de um amigo, ele se deparou com Chica, então com 17 anos, e se apaixonou por ela imediatamente. Determinado a tê-la, pagou um valor altíssimo por sua compra; um preço tão exorbitante que o antigo senhor de Chica, relutante em vendê-la, acabou cedendo para não se indispor com o poderoso representante da Coroa no Brasil.

A partir desse momento, a vida de Chica mudou completamente. Ela se tornou uma das mulheres mais influentes e ricas do país, desafiando as estruturas sociais e raciais de seu tempo.

Chica era chamada de mestiça: filha de uma mulher negra e de um homem branco. O livro a descreve como uma jovem de pele morena e longos cabelos cacheados, traços que chamavam a atenção. No início de seu relacionamento com João Fernandes, enfrentou o preconceito e o desprezo da sociedade local. Muitos não aceitavam que uma ex-escravizada pudesse ascender socialmente. Movidos pela inveja, espalhavam comentários maldosos, pois, para a mentalidade da época, era inconcebível que alguém de sua origem ocupasse um lugar de destaque ao lado de um homem tão importante.

Não acha, major, que João Fernandes fere demais o povo do Tijuco, estadeando sua mulata com esta farrompa toda? (p. 89)

Chica e João Fernandes viviam um amor intenso, mas marcado por um ciúme doentio que consumia ambos. Em nome desse sentimento possessivo, os dois teriam autorizado atos cruéis. Embora essa parte da história careça de comprovação documental, o autor descreve episódios dramáticos em que Chica pune severamente — e até extermina — mulheres que suspeita terem se envolvido com João. Da mesma forma, ele também teria cometido violências por ciúmes dela. A narrativa revela como a paixão, quando levada ao extremo, pode se confundir com obsessão e crueldade.

Com o tempo, Chica conquistou a simpatia e a admiração dos moradores do Tijuco. Aqueles que antes torciam o nariz para sua presença passaram a bajulá-la com entusiasmo. Convidados com frequência para os suntuosos almoços e festas em seu imponente palacete, muitos passaram a tratá-la como uma verdadeira soberana. A mulher que fora alvo de preconceito e desdém agora tinha súditos que quase beijavam o chão por onde ela passava.

Agripa Vasconcelos relata diversos acontecimentos do povoado, incluindo a comovente história de Severino, um ex-escravizado com mais de 60 anos. Ele vivia tranquilamente em sua pequena casa até que, numa certa noite, ouviu por acaso a conversa de dois homens tramando a morte de João Fernandes. Sem hesitar, correu até a casa do contratador e o alertou a tempo, salvando-lhe a vida. Chica e João demonstraram gratidão pelo gesto.

No entanto, algum tempo depois, Cabeça — um dos homens de confiança de Chica — perdeu um saquinho com diamantes. Severino o encontrou e o devolveu, mas ao conferirem, perceberam que havia apenas 184 pedras em vez das 185 registradas. João, sem considerar a honra ou o histórico do homem que lhe salvara a vida, ordenou que Severino fosse torturado até confessar o roubo de um diamante. Mesmo sendo inocente, Severino não resistiu à brutalidade e morreu sob tortura.

É uma das passagens mais revoltantes do livro. A triste ironia é que Severino morreu por ter ajudado os poderosos. Essa história escancara como a lealdade dos pobres, muitas vezes, é paga com desconfiança e crueldade pelos ricos.

A história de Chica da Silva, tal como narrada por Agripa Vasconcelos, está longe de ser um conto de fadas. É, antes, um retrato complexo e muitas vezes sombrio de relações marcadas por poder, ciúmes, vaidade e desigualdade. Por trás dos vestidos luxuosos, dos banquetes e da adoração popular, há rastros de dor, violência e injustiça. A trajetória de Severino, símbolo da lealdade silenciada pelos gritos da tortura, evidencia como o brilho da elite se sustentava sobre a sombra dos esquecidos. Ao final, fica a pergunta: quantos outros, como ele, pagaram com a vida por confiar demais em quem jamais os viu como iguais?

É um livro riquíssimo em informações sobre o ciclo dos diamantes no Brasil colonial. Nele, conhecemos uma Chica construída como personagem, com traços fictícios, mas que também nos oferece uma breve, e por vezes perturbadora, impressão de como pode ter sido ter sua vida radicalmente transformada pelo amor — e pelo poder — de um homem.

E você já leu Chica que Manda? Recomendo a leitura especialmente para quem se interessa pelas histórias da colonização do nosso país e pelas contradições sociais que marcaram aquele período.

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Foto Regiane Silva Regiane Silva

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