
Ler Machado de Assis é sempre um prazer; ainda que, no meu caso, tenha sido um amor que nasceu aos poucos. Meu primeiro contato foi com Dom Casmurro, e só depois de um tempo percebi que estava diante de um autor que eu amaria para sempre. Embora tenha um carinho especial por sua fase romântica, a verdade é que suas obras, em qualquer fase, são sempre marcadas por inteligência, sutileza e profundidade.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é um marco na literatura brasileira e um divisor de águas na obra de Machado de Assis. Publicado inicialmente em folhetins em 1880 e depois em livro no ano seguinte, o romance inaugura o realismo no Brasil com ironia refinada e crítica mordaz à sociedade do século XIX.

Resenha
O narrador, Brás Cubas, escreve suas memórias depois de morto. Essa perspectiva inusitada permite uma narrativa livre das convenções sociais e morais que geralmente limitam os vivos.
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.
Irônico e desencantado, ele revisita sua vida com sarcasmo e frieza, revelando as hipocrisias da elite carioca, sua vaidade e mediocridade.
Ao invés de contar uma história de grandes feitos ou virtudes, Brás Cubas se orgulha de ter sido um “não-herói”, e sua maior invenção – o “emplasto Brás Cubas”, um suposto remédio para aliviar a melancolia – nunca chegou a existir de fato. Ele se envolve com mulheres (como Virgília, seu amor adúltero, o que me faz lembrar o “suposto” triangulo amoroso em Dom Casmurro), persegue prestígio político e social, mas termina a vida (e a narrativa) sem grandes conquistas. Seu “triunfo” final é não ter deixado descendência, escapando de perpetuar a dor humana.
Ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
A escrita fragmentada e cheia de digressões aproxima o leitor da mente do narrador, criando uma experiência quase íntima com seus pensamentos.
O humor ácido, os comentários metalinguísticos e a quebra da quarta parede tornam a obra inovadora até hoje. Percebi esse mesmo padrão em Dom Casmurro. Bentinho sempre falava diretamente com o leitor, e Brás Cubas faz o mesmo.
Crítica à escravidão
Memórias Póstumas de Brás Cubas critica a escravidão de forma sutil e irônica, refletindo a visão crítica e sofisticada de Machado de Assis. Embora o livro não seja panfletário, ele revela o absurdo e a hipocrisia da elite escravocrata brasileira por meio de personagens e situações que expõem essa realidade.
Machado era filho de um descendente de negros alforriados, então ele melhor do que ninguém poderia se imaginar na situação de um escravo.
Em Helena, há uma crítica a escravidão feita pela personagem ao dar um passeio com o irmão. Já nesta obra, a crítica é um pouco mais sutil, pois não temos os sentimentos do personagem a respeito da cena, ele apenas a narra e nos deixa pensativos sobre o acontecido.
Brás Cubas tinha um ex-escravizado chamado Prudêncio, que ele agredia quando era criança. Anos depois, Prudêncio, agora liberto, repete o ciclo de violência batendo em um escravizado. Essa cena expõe como a escravidão desumaniza todos os envolvidos.
O personagem nunca questiona a escravidão — ela é apenas parte do pano de fundo de sua vida confortável, revelando a invisibilidade e desumanização dos escravizados.
A elite valoriza aparências e convenções, mas mantém um sistema brutal de opressão. O narrador é o retrato dessa classe moralmente falida.
Machado denuncia a escravidão não com discursos, mas com personagens e silêncios que fazem o leitor refletir.
Eugênia, a coxa: uma crítica à hipocrisia social
Eugênia é uma jovem bonita, inteligente e sensível com quem Brás Cubas tem um breve envolvimento amoroso. Ela é filha ilegítima de um homem influente e tem uma deficiência física. Apesar de suas qualidades, é descartada por Brás Cubas como possível esposa devido a sua origem e sua deficiência.
Ele jamais a considera um “bom partido” porque ela não se encaixa nos padrões sociais da elite. Sua deficiência a torna inadequada para o casamento, mesmo sendo bela e virtuosa. Na verdade, o futuro dela já estava traçado. Se tivesse sorte, conseguiria um emprego para se sustentar, mas a história mostra que não houve sorte para Eugênia.
[Eugênia] ao reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante. Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade. Compreendi que não receberia esmolas da minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa de um capitalista. Cortejou-me e fechou-se no cubículo. Nunca mais a vi; não soube nada da vida dela, nem se a mãe era morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miséria. Sei que continuava coxa e triste.
A rejeição de Eugênia por Brás Cubas revela a crueldade e o egoísmo da elite, que prioriza status e convenções sociais sobre sentimentos verdadeiros.
Em vez de fazer discursos, Machado mostra a injustiça através da atitude do narrador. O leitor percebe o absurdo por conta própria — e essa é a genialidade do autor.
Eugênia representa os marginalizados por uma sociedade hipócrita, que valoriza aparência e reputação acima de tudo. Ao mostrar como ela é descartada, Machado desmonta os valores dessa sociedade com elegância e crítica feroz.
Conclusão:
Por que ler? Porque é uma das maiores obras da literatura brasileira, ousada em sua forma e profunda em seu conteúdo. Memórias Póstumas rompe com o romantismo idealizado e propõe uma visão cínica e lúcida da condição humana. Há muitos Brás Cubas por aí, pessoas preocupadas apenas com o próprio umbigo.
Machado de Assis prova, com elegância e inteligência, que não é preciso grandes eventos para criar um grande romance — basta um morto com senso de humor.
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